quinta-feira, 7 de abril de 2011

Ética e Humor: Entrevista com Newton Cannito

Entrevista concedida para o blog do Luiz Zanin.

Uma das mesas de debate do É Tudo Verdade (Ética e Humor) reúne Newton Cannito, Jean-Claude Bernardet e Marcelo Tas. Cannito é autor de dois filmes provocativos e que causaram muita polêmica: Jesus no Mundo Maravilha e Violência S/A. É preciso vê-los. Mas posso adiantar que tratam de temas graves como a violência urbana, corrupção policial, o sentimento de medo da classe média, sempre em chave não convencional. Usam a paródia, o humor (muitas vezes desconcertante), a ironia e mesmo o sarcasmo como formas de problematizar reações estereotipadas. São filmes discutíveis – e isso é um elogio. A minha ideia era fazer uma grande matéria para o jornal, mas não foi possível. Vai no blog. Entrevistei Newton Cannito. Perguntas e respostas seguem abaixo. Façam bom proveito.

Por que você escolheu essa aproximação aos graves problemas através do humor? Acha mais eficaz? Como é que você fundamenta isso?

Primeiro porque eu queria despertar o choque. Sair da mesmice da representação cotidiana. São temas e imagens muito vistos na televisão e no documentário na forma de drama social. Essa forma foi tão repetida que perdeu o impacto. Para revelar novamente essa realidade cruel era preciso mostrá-la em uma forma nova. A escolha do humor veio daí.
No “Violência s.a.” nossa maior referência foi o satirista Swift, de “Panfletos Satíricos”. Partimos da contradição de que a violência começa a ser um mercado e começa a enriquecer pessoas. Essas pessoas tem interesse pessoal no aumento da violência e geram uma cultura do medo. E então fizemos o filme a partir da pergunta: como ganhar dinheiro com a violência? E quais os absurdos que isso gera. Tal como Swift e Kurt Vonegut trabalhamos com a revelação de lógicas sociais absurdas.
Mas eu acho que a grande questão é que nosso documentário precisa saber trabalhar mais com os gêneros dramáticos. Nosso cinema tem muito medo de trabalhar gêneros. Mesmo o docudrama é pouco trabalhado. João Batista de Andrade é, para mim, o principal documentarista brasileiro. Ele fez docudramas maravilhosos, como Caso Norte e Wilsinho Galileia. Mas hoje é também acusado de ser antiético por explorar os personagens. Nosso documentário constrói mal personagens por conta desse desprezo e desconhecimento da teoria dramatúrgica. Nosso documentario atual está muito retorico /discurso e pouco dramático. Acredito que nosso documentário tem que reaprender a trabalhar com gêneros sem preconceito. Ou vai ficar muito homogêneo.
Jesus no Mundo Maravilha, por exemplo, começou sendo um projeto totalmente diferente. Era para ser um docudrama, chamado Fatalidade, que trabalhava com o formato da tragédia moderna. Mas foi impossível fazer esse filme, pois o policial que assassinou o filho da mãe entrevistada não foi autorizado a filmar. Parti então para entrevistar policiais exonerados. Quando vi o universo do parque, no primeiro dia de gravação, tive a idéia de mudar o gênero do filme. Deixou de ser um docudrama e virou uma docufarsa, aí entrou o humor. Foi a solução para esse filme. Pode ter outra solução para outros filmes.
O importante é nosso documentário aprender a trabalhar com gêneros.

Por fim, você acha que o documentário bonzinho, aquele que trabalha com total empatia e cumplicidade com os personagens já não produz mais efeitos? Produziu algum dia? O Jean-Claude costuma dizer que o documentarista brasileiro não tem coragem de contestar seus entrevistados. Concorda?
Nada contra documentário bonzinho. O nome disso é institucional. Pode ser institucional de pessoas, mas é institucional. Eu já fiz uma vez, fui contratado e fiz. Acho normal, mas se puder não faço mais. É chato.
Acho que esse tipo de documentário nunca produziu efeitos e não é arte. É propaganda. Pode ser propaganda de pessoas, de grandes artistas , mas é propaganda. Boa parte do cinema documental brasileiro de hoje poderia passar no People and arts. Eu não me interesso por isso.
Quanto a afirmação de Jean claude. Sim, é isso mesmo. Nossos documentaristas viraram puxa sacos de seus entrevistados. É típico de institucional. Temos que superar essa fase.

A questão da ética é clara para você? Por exemplo, alternando a fala dos policiais com a daquela mulher que chora a morte do filho, o que você busca causar no público?
Sim, tenho muito claro a questão ética. No caso desses meus dois documentários que dirigi o que busco é explicitar os conflitos sociais. Trazer a tona verdades ocultas, preconceitos que nossa sociedade quer esconder debaixo do tapete. Preconceitos que temos em nós mesmos. É uma ética que busca despertar o público de sua apatia. Meus filmes trabalham com estéticas/éticas que estão mais próximo das vanguardas, da obra de Eisenstein (cine-punho) ou do teatro da crueldade do Artaud.
O debate ético sobre documentário no Brasil ainda é tacanho. Ele se restringe a debater a figura do entrevistado. É muito pouco. A conclusão dos estudiosos de documentário é que o realizador deve “tratar bem” a pessoa entrevistada para não magoar a “vitima” entrevistada. Isso para mim é uma confusão entre ética e etiqueta. A etiqueta é a ética da elite. É a ética do bem educado, que interessa a manutenção do status quo. Existem outras éticas. Na verdade, cada filme tem uma ética própria. Além disso, esse raciocínio de que o entrevistado é uma “vítima” indefesa do diretor tirânico é arrogante (supervaloriza o diretor e a importância do cinema), melodramático e paternalista. Os entrevistados de meus filmes não são nada bobos e não da para encaixá-los como vitimas indefesas. E – apesar de ter “zombado” de alguns deles – não destruí a vida de ninguém.
Para mim não existe arte sem conflito. E um dos conflitos do filme é sempre entre o diretor (narrador) e o personagem. Sempre haverá uma interpretação. O “personagem” sempre será interpretado pelo narrador.
Tem, no entanto, algumas diferenças:
a) Alguns não gostam de deixar claro que fazem uma interpretação do personagem. Preferem se fingir neutros, imparciais. Um exemplo, eles não explicitam um corte brusco no filme como eu costumo fazer. Mas eles também selecionam perguntas e escolhem o que editar. Estão também construindo personagens. Mas preferem se fingir de neutros. Eu prefiro deixar bem claro ao público que o diretor existe e interpreta. Faz parte da minha ética explicitar as manipulações que faço. Acho melhor explicitá-las do que escondê-las sobre um verniza de imparcialidade, falsamente justa. Pois assim o público terá mais liberdade de concordar ou não comigo.
Mas não sou como os que me criticam e não gosto de acusar os outros de serem antiéticos. Eu não acho que quem faz filme diferente de mim é anti-éticos. Só acho que eles tem outra ética (a da etiqueta). Acho normal. Faz parte da minha ética não ficar por aí afirmando que os outros são antiéticos.
Nem os personagens, nem os outros documentaristas.
Quem gosta de afirmar que o outro (diferente dele) é antiético é, na verdade, um moralista. Nos anos 60 isso era claro: eram o pessoal da moral e bons costumes! Agora eles se disfarçaram de guardiões da ética. É a mesma coisa.
b) Eu gosto de personagem complexo e com conflito interior. Ou seja, o personagem (documental ou ficcional) tem que ter um lado negro. Sempre! Seja “mocinho” ou “bandido” (na verdade , não trabalho com isso de mocinho ou bandido). Todos tem lados negros e todos tem sua ética própria. Podem merecer ser presos pois fizeram coisas ilegais. Mas tem também sua ética própria. Isso de ficar escondendo lado negro de personagem para “respeitá-lo” não me interessa artisticamente.
E por fim, é preciso dizer. Não da para fazer um filme pensando o tempo todo na futura ética (ou moral, como eu já disse) do filme. Isso é auto-patrulhamento moralista. Fala-se muito da “responsabilidade” necessária ao documentarista. Mas ninguém lembra da necessária irresponsabilidade! Da necessária loucura e entrega que um artista deve ter ao realizar seu trabalho. Não existe arte que na criação fica o tempo todo se controlando.
O cineasta deve ser um xamã. Para revelar a realidade ele tem que descer aos infernos. Para que o monstro se revele o cineasta não pode julgá-lo o tempo todo. Tem que deixar aflorar no momento da filmagem. Depois pode comentar no momento da edição. Foi o que fiz (ao lado de Saad e Benaim), por exemplo, na entrevista com Erasmo Dias e com os “bandidos” no documentário “Violência SA”. E foi o que fiz com todos os personagens do “Jesus no Mundo Maravilha”. Se você fica o tempo todo julgando o “outro” a partir de sua própria ética você não deixa a verdade aparecer. Nisso, o diretor do filme documental, tem que ser como qualquer bom ator. Todo bom ator sabe que tem que amar o personagem. Mesmo se ele for um “vilão”. O que faz a ética do filme, no entanto, não é apenas a entrevista e o personagem. No momento da filmagem eu gosto de estar ao lado do meu entrevistado, seja quem ele for. Ali, eu sou ele, nós dois somos o mesmo. Mas depois, na montagem e edição de som, eu recupero minha opinião e afirmo minhas posições sem ter dó de ninguém. Não sou paternalista e não que preciso cuidar de meus entrevistados. Respeito eles, são adultos e assinaram cessão de direitos. Não acho o diretor um superman que vai acabar com a vida de um entrevistado. Acho esse raciocínio, aliás, bem arrogante. Prefiro me considerar um colega dele de vida e quero debater com ele como uma pessoa adulta, inclusive minhas diferenças éticas. Eles não são fragéis. Se me autorizaram a filmar eles sabem que tem algo ali, sabem desde o inicio que vou construir a imagem deles na edição. E aceitam esse pacto, por interesse próprio.
Por fim , é também necessário dizer: nunca existiu um bom filme que não tencionasse a ética. Pode rever a história do documentário. Todo grande cineasta tencionou a ética da época. Pois é só tencionando a ética é que o filme choca. A função da arte é trazer a tona o inconsciente, é mexer nisso, é mostrar a verdade oculta. E ao fazer isso ela ajuda até mesmo a reformar a ética daquele momento e fazer a sociedade evoluir.
Não é função do cineasta ser bonzinho. Se você quiser ser bonzinho é melhor ser dono de “Ong”. Também não é função do cineasta apresentar as soluções. Vamos deixar isso para os políticos. A função do artista é revelar o mundo ao público, inclusive as parte negras do mundo. Que são também parte negras de nós mesmos. Por isso, incomoda. Mas é essa a função da arte. Remexer nas entranhas de nossos piores delírios, trazer nosso inconsciente para a arte, para aí melhorarmos todos.
O artista para mim é como um xamã: ele tem que descer aos infernos para ajudar na cura das loucuras, seja elas coletivas ou individuais. Essa é minha ética.

Um documentarista como o Eduardo Coutinho parece trabalhar com um profundo respeito pelos personagens? O que acha da postura dele? E qual a sua forma de trabalho e em que ela se difere de outras? Visa alcançar resultados políticos (no sentido amplo do termo, claro) com esse tipo de documentário de choque?
Não acho que Coutinho faça isso que os críticos acham que ele faça. Coutinho é muito melhor que seus críticos. E – obviamente – muito melhor que os cineastas que tentam copiá-lo a partir da leitura simplificada dos críticos. Coutinho mostra a complexidade dos personagens e – em seus melhores momentos – explicita momentos aonde eles chegam próximos ao patético. Nem sempre acerta, mas tem ótimos momentos disso, em tom de comédia melancólica. São momentos muito humanos, maravilhosos.
Outros momentos, Coutinho faz ironias machadianas. O filme aonde isso mais se evidencia é Teodorico- Imperador do Sertão (que é meu filme preferido do Coutinho). Nele Coutinho dá a voz ao personagem do coronel, mas é irônico com a câmera. Ali o narrador(diretor) denuncia o personagem. E outros filmes ele não faz mais ironias com a câmera, mas revela momentos complexos dos personagens. Já em outros filmes, ele acreditou demais na análise de seus analistas, e seus filme ficaram – infelizmente – meio amorfos.
E sim, o objetivo dos documentários que fiz é sempre politico. Isso fica mais claro no “Violencia” e “Jesus…” que são sátiras sociais. Mas também é presente no “Alo Alo Terzinha”, filme do Nelson hoineff sobre o Chacrinha, que fiz o roteiro. Quando Hoineff me chamou para escrever o roteiro e o projeto do “Alo Alo Terezinha” tivemos claro desde o início que não devíamos fazer uma biografia tradicional. Acredito que a melhor forma de neutralizar um personagem contestador é fazer um documentário careta sobre ele. Não queríamos neutralizar o Chacrinha, queríamos revive-lo. Chacrinha merece do que virar um velhinho louco do People and arts. E aí o filme seguiu outro caminho. Tal como o Coutinho no Cabra Marcado para Morrer, decidimos revisitar os personagens dos anos 70. “Alo Alo Terezinha” foi o “Cabra Marcado” da indústria cultural. A crítica – que finge gostar de Chacrinha porque ele já morreu e não tem mais perigo – não gostou do filme. Acusou de ter zombado dos personagens. A questão é que não existe humor a favor. O humor – desde o bufão, ou o palhaço, sempre zomba de nós. Se for um bom humorismo ele – ao zombar de um tipo social – nos incomoda e revela coisas sobre nós também.
E, voltando a falar de política, considero o “Alo Alo Terezinha” um filme que revelou a crueldade da indústria cultural. Um tema fundamental e que também esta presente em meus outros trabalhos. Em “Violência s.a” investigamos como programas sensacionalistas difundem um pânico excessivo na população. E em “Jesus…” o tema esta presente no personagem do palhaço, que representa a mania moderna de todos quererem aparecer na tv.
O interessante é que os críticos atacam os documentários de humor atuais usam os mesmos argumentos dos críticos conservadores que atacavam o Chacrinha nos anos 70. O politicamente correto já existia naquela época, mas era chamado de direita conservadora. O que acho mais estranho é as pessoas dizem que gostam do Chacrinha, mas afirmam que “Alo Alo Terezinha” é antiético. Porque Chacrinha podia fazer no passado e não podemos fazer mais hoje? O Chacrinha, ok, pode fazer isso, pois já morreu? É isso?
A mostra Risadoc serviu para catalisar esse debate. Eu e Eduardo Benaim resgatamos vários casos de documentários brasileiros (alguns clássicos como “Iracema” e “Teodorico”) que trabalham com humorismo. Os clássicos são aceitos, mas neutralizados. Seu potencial de polêmica e crítica social pelo humor é esquecido. Já os filmes mais recentes são desconsiderados no debate sobre documentário brasileiro, que ficou muito centrado na estética do Coutinho. Ou melhor, na forma limitada que a estética de Coutinho foi interpretada pelo Escorel e pelo João Moreira Salles. Isso tem reduzido a diversidade de nossa expressão na estética documental. Eu até gosto dos filmes do Salles e de alguns Coutinho. Mas não posso aceitar que isso seja a única forma de fazer documentário. Nosso objetivo com esse debate é que os cineastas liberem sua criatividade e aprendam a trabalhar com todos os gêneros e formatos possíveis, escolhendo o mais adequado ao objeto que vai ser representado.

Por parte de quem você foi patrulhado? Pela turma do politicamente correto, à direita ou à esquerda no espectro político?
Eu acho que eles estão à direita. Eles se consideram a esquerda. É curioso ver como a esquerda virou politicamente correta e anti-contestadora. Eles se consideram de vanguarda e aí seguem o que eles consideram as “regras da boa vanguarda”. Parece que “Tudo muda, menos a vanguarda”.
No caso do “Alo Alo Terezinha” um crítico chegou a propor o que ele chama de “interdição critica”. Ali ficou claro para mim que existe um movimento meio oculto de evitar debater com os filmes que esse grupo hegemônico considera “antiéticos”.
A grande maioria dos filmes que eu curto são ignorados e/ou tachados de antiéticos e ponto final. O debate para aí. Os filmes não são selecionados para festivais e não são debatidos. Apenas “Alo Alo Terezinha” (por ser longa-metragem e agradar o público) e “Jesus…” romperam essa barreira. E aí foram acusados e ponto final. Apenas agora estamos conseguindo debater os filmes.

No caso de “Jesus…” o filme foi ignorado por um bom tempo, um silêncio sepulcral. Cheguei a convidar alguns críticos a participar de debates que eu promovia sobre o filme. Eles viram o filme e se negaram a participar. Disseram que foi problema de agenda. Depois de quase um ano Jean Claude Bernardet escreveu afirmando que o filme era uma referência inevitável ao documentário brasileiro contemporâneo. Em seguida, o pessoal do Doctv, colocou o filme para um debate que tinha na plateia boa parte do ambiente de documentário brasileiro. Jean Claude defendeu o filme e aí “o pau comeu” entre ele e Eduardo Escorel. O Escorel afirmou que o filme é “um caso claro de abuso de poder do diretor” e acusou o Jean Claude de estar sofismando. Varios outros críticos também acusaram o filme de ser antiético. Finalmente as posições começaram a ficar claras. Devido a coragem e a importância crítica do Jean Claude os outros críticos decidiram se posicionar contra o filme e explicitar suas opiniões. No blog do filme tem vários artigos atacando o filme www.jesusnomundomaravilha.blogspot.com). Foi ótimo, adoro quando as posições ficam explicitadas. Acho muito estranho pessoas que se consideram democráticas e que querem interditar o debate. É uma censura educadinha, exercida pelo silêncio, por atuar no controle dos critérios de qualidade dos festivais e pela negação ao debate.
Acho o debate muito saudável. O que mais me assusta é tentar fazer interdição crítica de qualquer coisa. Temos que tomar cuidado com quem sai à rua acusando os outros de serem fascistas. Pode ser patrulhamento. Muitos fascistas surgiram acusando os outros de serem fascistas. Acho que a crítica tem que ter a coragem de debater o que é ético ou antiético com toda a sociedade. Quem é democrático não pode ter medo do que acha que é fascista.

Gosta de incorporar o acaso à sua filmagem? Por exemplo, a presença daquele palhaço no parque de diversões em Jesus Maravilha? Acha que isso enriquece o documentário?
Adoro o acaso. Para mim o instante da filmagem é tudo, é sagrado e temos que estar atento a tudo que acontecer. O palhaço ,por exemplo, se impôs no filme. Ele queria aparecer e eu pensei: quem sou eu para negar? Eu nunca soube direito a função dele no filme, mas filmava ele com prazer. Sentia que ali tinha coisa. E tinha.
Eu não tinha roteiro prévio. Só tinha claro que o filme terminaria no dia que o Lucio topasse rodar em brinquedos do parque de diversões. E foi isso mesmo. Ele só topou no último dia, foi o dia que me contou as coisas mais fortes e ensinou tortura ao jovem assistente.
Antes disso foram muitos dias de pura curtição na filmagem. Para conquistar os personagens eu aprendi a curtir eles de verdade. São meus amigos, brinquei com eles. Filmei muito eles andando no parque, eles adoravam essa exposição tarantinesca e eu curtia filmar isso. Sem pauta clara.
Mas para improvisar é preciso uma mega pesquisa de campo. Como fiz – na mesma época a serie 9mm (para a fox) – eu tinha lido milhares de livros sobre policiais, entrevistados muitos outros, conhecia bem o universo deles. Sabia o que significa as gírias, sabia as regras do universo deles (quais são as regras da corporação, etc..). Para improvisar na filmagem é necessário que você realmente conheça bem o universo.
Eu só entendi o que era o filme depois de pronto. Em todo o processo eu fui descobrindo a estética (e a ética) do filme. A improvisação também é isso. Tem que estar aberto para ir a fundo com os personagens. Não é improvisação apenas da câmera e/ou da pauta da entrevista. É improvisação existencial.
O diretor tem que se entregar. Tem que ouvir realmente. Tem que correr o risco de se convencer de que o personagem está certo. Mesmo que ele tenha matado 80 pessoas, mesmo que ele seja racista, fascista, machista, seja quem for. Você tem que correr o risco existencial de naquele momento se entregar e aceitar que – quem sabe – você poderá concordar com ele. Em meus filmes eu me tornei mais um da turma. Foi ao ouvir e rir das piadas racistas que os personagens me revelaram seu racismo. Foi por não julgar seu fascismo que eles revelaram seu fascismo.
Isso é que é real improvisação. A improvisação existencial. É perigosa, você pode sair do filme transformado. Mas é isso que torna o instante da filmagem um momento real e sagrado.
Apenas no final do filme eu entendi o que ele realmente virou. Eu não sabia antes, só entendi no final. “Jesus no mundo maravilha” é uma mistura de Jean Rouch com “Pânico na TV”. De Jean Rouch tem vários procedimentos de cinema verdade, com a presença ostensiva da câmera, a metalinguagem e as representações “dramatizadas” do imaginário dos personagens. Do Pânico, o filme traz o humor, a auto ironia e a criação a partir do meta-espetáculo televisiva.

Publicada em:

http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/etica-e-humor-entrevista-com-newton-cannito/

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Comentário de Luiz Zanin sobre o lançamento em DVD do Jesus

Se no âmbito dos brasileiros a temperatura parece um tanto morna, ela deve ferver no debate de lançamento dos DVDs de dois documentários de Newton Cannito, Jesus no Mundo Maravilha e Violência S.A. (este em parceria com Eduardo Benaim e Jorge Saad). A começar pelo título da mesa – A Verdade É uma Farsa (dia 5/4, às 19h30, na Livraria Cultura do Shopping Villa Lobos) – da qual participam o diretor, o pesquisador Jean-Claude Bernardet e o apresentador Marcelo Tas.
A ideia dos documentários é apresentar assuntos dolorosos (no caso a violência urbana) sob o formato humorístico. Os filmes fascinaram estudiosos como Bernardet, mas também causaram repulsa em outras pessoas. Ao propor o tratamento paródico de uma situação que envolve ex-policiais adeptos da pena de morte, um palhaço e uma mãe que teve seu filho morto pela polícia, o documentarista expõe-se a opiniões controvertidas. Como a do cineasta Eduardo Escorel, que classifica a posição do cineasta, neste caso, como de “abuso de poder”. E a de Bernardet, que considera o filme Jesus no Mundo Maravilha inovador ao introduzir a ironia no domínio do documental e aceitar que vivemos de modo inescapável na sociedade do espetáculo.
São discussões polêmicas, que envolvem a ética do documentarista em relação aos seus personagens e prometem muito calor ao debate – e, com sorte, alguma luz também.

http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/e-tudo-verdade-a-volta-da-politica/

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Venda do DVD

Já está disponível para a venda sob encomenda do DVD Jesus no Mundo Maravilha... E Outras Historias da Policia Brasileira no site da livraria cultura:

http://www.livrariacultura.com.br/scripts/videos/resenha/resenha.asp?nitem=22490320&sid=968174250134155752143367&k5=39C201D4&uid=



'Jesus no Mundo Maravilha' é o documentário brasileiro que mostra a vida de três militares que, após serem exonerados da polícia, trabalham num parque de diversões. Num clima onírico - enquanto surram o palhaço, brincam com crianças e rodam em brinquedos - eles revelam seus valores, seus sonhos e seus crimes. Enquanto isso, uma família vítima de policiais chora a morte de seu filho e clama por justiça.


Mídia: DVD
Região: 4
*Brasil, Austrália, Nova Zelândia, México, América Central, América do Sul
Ano de produção: 2007
País de Produção: Brasil
Gênero: DOCUMENTÁRIO
Duração: 52 minutos
Volumes: 1
Sistema: NTSC
Sistema de Cor: Colorido
Idioma Original: PORTUGUES - DOLBY DIGITAL 2.0
Legenda: ESPANHOL INGLES

sexta-feira, 25 de março de 2011

Ver: como e onde

26/março/2011 (sábado), exibição às 13h no RisaDoc,
dentro da programação do Risadaria, no Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo

05/abril/2011 (terça), às 18h30, no auditório da Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos
Debate sobre os limites da sátira e o papel do humor na reflexão social
com Jean Claude Bernardet, Marcelo Tas, Eduardo Benaim e Newton Cannito
E lançamento do “Jesus no Mundo Maravilha” em DVD!

Jesus dando risadas

Ola Gente

Sabado, dia 26/março/2011, haverá exibição de Jesus no Mundo Maravilha dentro do RisaDoc, evento que exibe documentarios humoristicos na programação do Risadaria, no Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.
quem puder ir é super legal de ver
É uma chance de ver o Jesus sendo exibido para uma plateia diferenciada, com pessoas interessadas em humor
Em abril teremos o lançamento do filme em dvd
abraço
Newton

terça-feira, 15 de março de 2011

Trechos sobre o debate do filme

“A grande virada que o Newton (o diretor do filme) deu é ter aplicado uma mecânica cômica, a um assunto que usualmente é visto na televisão e no cinema com gravidade, e entre nós, é considerado com gravidade. Esse filme é um escândalo! E ele é um escândalo justamente por ser um filme que não respeita nenhum dos princípios da seriedade. Ele fere todos os princípios do documentário convencional: entrevista sobre fundo abstrato, fundo infinito; entrevistas que não estão em “sincro”, dentro do carro; planos acelerados, ou plano ralentado; a parodia; o lúdico... Quando eu vi o filme pela primeira vez eu percebi que eu tinha rido várias vezes durante a exibição, mas quando acabou o filme eu estava absolutamente atônito. Esse filme transformou uma das chagas da sociedade - que provém da ditadura - num imenso espetáculo farsesco; e isto aumenta a gravidade, a dramaticidade, da situação. E nesse sentido, o filme é quase “uma tragédia em ritmo de Marcha Turca”. Os documentaristas brasileiros não poderão ignorar este filme à partir de agora. Que odeiem, que gostem, vai ser necessariamente uma referência. Ele é, desde já, um marco. Ou documentário irônico, ou documentário grotesco, ou documentário do artificialismo... vai ser alguma coisa em relação à qual as pessoas vão ter que de alguma forma, mais ou menos voluntariamente, se posicionar.”Jean Claude Bernardet (em debate no doctv)

“A questão do diretor é sim crucial; e ela deve ser avaliada, e discutida...
Não acho que o escândalo em si tenha nenhum mérito. ... Acho que esse filme é um exemplo claro de abuso do poder. E acho que nós não devemos ser complacentes com o abuso do poder. Abuso do poder do diretor, no caso.”
Eduardo Escorel (documentarista e montador, no mesmo debate do doctv)

“O filme tem uma certa complexidade filosófica, justamente ao assumir o espetáculo, ao assumir o artificialismo, a paródia, a simulação, o lúdico. Ele pertence ao mesmo universo de “Jogo de Cena” (do Eduardo Coutinho). São filmes que assumem que estamos na sociedade do espetáculo, que não temos como escapar e temos que lidar com isso, de alguma forma!”
Jean Claube Bernardet

E eu problematizaria justamente esse “lugar do filme”, “lugar do documentarista”. “Onde é que tá o documentarista nessa briga de discursos que o filme...” Que não é uma briga também tão grande assim não, na verdade acho que há um consenso no final, eu não acho que há dissenso; eu acho que no fundo ali todo mundo concorda. Documentarista, policial, mãe e palhaço. Porque todo mundo tá com o mesmo discurso. “A morte é necessária.”... É preciso a gente questionar esse projeto. Não estou dizendo “recusar” ou “condenar”; mas, questionar de fato esse projeto. Ele pode ser inovador; não necessariamente ele é uma inovação positiva
Cleber Eduardo


Eu me sinto um pouco com um transtorno bipolar como espectadora diante desse filme; porque eu oscilo entre a rejeição completa e a adesão à essa desestabilização diante de qualquer possibilidade de sentido. É uma ambigüidade radical, essa desestabilização que desestabiliza o consenso. E só há democracia no dissenso.
Ilala Feldman

quarta-feira, 5 de maio de 2010

ESCÁRNIO DA CRÍTICA CATÓLICA

Este texto é uma resposta ao artigo "Crítica da Montagem Cínica", escrito por César Guimarães e Cristiane Lima, publicado no site português DOC ONLINE (www.doc.ubi.pt). Como montador de Jesus no Mundo Maravilha, vejo-me intimado a escrever, já que boa parte do dilema envolve diretamente as operações que realizei, junto com a direção, na estruturação do filme.
Assim como Jesus no Mundo Maravilha contraria os mandamentos da parcela da crítica que o condena, o tom deste texto também contraria os protocolos da crítica, tanto da boa quanto da má. Estou cada vez mais convencido de que a crítica da crítica compreende o escárnio, o sofisma, o aforismo, o deboche e a má educação. Isto porque a meu ver o artigo em questão esforça-se, a partir de pré-concepções de cunho moral, em tentar provar que Jesus no Mundo Maravilha trata-se de uma monstruosidade anti-ética, um ovni abjeto e supostamente indesejado dentro do espectro daquilo que se habituou chamar de “documentário”. Trata-se de mais um capítulo da cruzada moralista da jovem crítica católica brasileira, que tenta a todo custo impor sua ética.
Em seu blog (http://jcbernardet.blog.uol.com.br/), Jean-Claude Bernardet, que é um dos defensores do filme, acredita que o documentário brasileiro contemporâneo passa por contradições profundas que são salutares. Então decidi contribuir, aprofundando ainda mais o fosso da diferença, escancarando os antagonismos. No ano passado tive a experiência de ler “Jesus no Mundo Maravilha, Uma Carta Aberta ao Realizador Newton Cannito”, de Cézar Melhoral (ou Milhorim, algo que o valha, não me lembro bem se é nome de remédio ou marca de fubá), e fiquei com uma preguiça danada. Lembro-me de dizer ao Newton que não estava interessado na discussão de fundo moral (por trás do refinamento da escrita doutoranda) que o texto levantava e que, sintomaticamente, começava com uma citação de Kracauer, que como seus seguidores sempre teve dificuldade em enquadrar os filmes dentro de suas teorias, nunca conseguindo encaixar a feliz diversidade do cinema em suas gavetinhas de preferência. Alguém já disse que é uma pena alguém tão inteligente e dedicado quanto Kracauer levar a vida toda a erigir um edifício só para dizer que preferia o realismo. Acho divertida a piada. Estamos falando de um tempo pré-Bazin (que, aliás, também era católico, porém bem mais inteligente)…


Mas o fato é que cansei de ficar apenas escutando a ladainha. Em situações e momentos como estes é preciso marcar mesmo posição, abrir frente clara de oposição e de rompimento, desmascarar os bons moços limpinhos e engomados, colecionadores de casacos, supostos defensores da ética, e que atualmente encontram-se entricheirados nas universidades em uma cruzada cristã pelo engessamento do documentário brasileiro. Isto precisa ser combatido, e rápido.
Meu texto pode parecer raivoso, mas seu tom desbocado é proposital, e de fundo filosófico. Tive este insight tomando um cafezinho aqui no Nicola, em Lisboa, frequentado no passado pelo sr. Bocage, que me faz também lembrar de Rabelais, Gregório de Matos, José Agudo e Rogério Sganzerla. Antes de mais nada, é bom deixar claro que pessoalmente não me ofendo com as tentativas neuróticas e desesperadas dos jovens acadêmicos católicos de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, em fazer com que seus pontos de vista construam um campo hegemônico. Há tempos que ando cansado mesmo, destes clubes de eleitos que se auto-elegem para tentar impor suas hierarquias de gosto, sua ética e sua moral, no caso das mais esquemáticas. No fundo são motivo de riso, escancarado mesmo – uma piada! Só que alguém tem que começar a dizer que essa igrejinha não é dona da razão, como tenta se fazer supor, pois é preciso e vital que o documentário brasileiro supere de uma vez por todas esse mal de época.

Lembro-me que comecei a editar o Jesus no Mundo Maravilha antes das gravações terem terminado. Era início de ano, e um assistente já havia convertido todo o material que fora gravado em dezembro. Cheguei para visionar e organizar o material, e lembro-me que fiquei entusiasmado. Tudo me parecia ao mesmo tempo estranho e estimulante para um documentário. Chamava a atenção, sobretudo, aquilo que me pareceu um salto em relação ao primeiro documentário de Newton, “Violência S.A.”. Este salto residia no fato das operações irônicas de sentido presentes em “Jesus”, às vezes beirando o absurdo, estarem presentes na própria composição da imagem, dentro de cada quadro, aonde podíamos ver, por exemplo, policiais dando aulas de tortura e contando suas proezas de Charles Bronson paulistano em meio a um mundo colorido de brinquedos mecânicos e algodão doce. Por outro lado, em Violência S.A., que particularmente não me agrada - e já cansei de dizer isto ao Newton e ao Eduardo, co-diretor, acho que a voz over está muitos graus acima do tom farsesco adequado – as operações de ironia, cinismo e escárnio devem-se quase que totalmente ao uso da voz over; já em Jesus a voz over é dispensada, e a ironia, o cinismo, o escárnio e a avacalhação passam a se operar diante da câmera, através da câmera, através da atução direta do diretor no embate com a realidade, através da interação que sua personagem (de diretor bufão) realiza com as demais personagens e em sua combinação com a locação do parque.
Mas estava dizendo do início da montagem. Faltava ainda alguma coisa àquele material que visionávamos, pois com as transformações ocorridas no projeto em seu decorrer,, havia por parte do Newton o desejo intuitivo de fazer um documentário onírico com aquilo tudo. Naquela combinação explosiva de histórias violentas, personagens patéticas e performances apalhaçadas, enveredar pelo sonho e pelo pesadelo parecia-me também ainda mais perigoso e estimulante. Conversamos sobre materiais adicionais, que poderiam ser produzidos para, na articulação com o material já gravado em dezembro, construir afinal a composição onírica que Newton almejava. Lembro-me claramente de pedir-lhe algum material de apoio que fosse abstrato, um trabalho de câmera sobre o espaço do parque, sobre os personagens neste parque, um material que fosse mais plástico e menos descritivo, pois com o conjunto de imagens descritivas, funcionais e objetivas que tínhamos o tal onírico não poderia ser estruturado.
Alguém pode pensar que estas reflexões sobre as opções da direção podem soar estranhas vindas do montador, mas acredito que a montagem de um projeto como este não pode compreender apenas o trato da matéria virtual das imagens, dos sentidos que emanam delas e das articulações entre elas, do resultado estético dos embates da câmera com o real (amém!), mas também a reflexão e a discussão sobre as próprias decisões da realização em sua luta, dada no fio da navalha de uma operação arriscada. Sobretudo porquê estruturávamos o filme por um ponto de vista que, confrontado com nosso entendimento do mundo, parecia-nos grotesco e injustificável. Daí pergunto aos católicos: não se pode fazer um filme cínico para mostrar que o mundo é cínico? Quem é que vai mostrar a fuça autoritária e dizer que não pode?
Assim, nessa dinâmica entre direção e montagem, prensenciei o momento subsequente à ligação da Mãe da vítima ao Newton, superando o medo de falar sobre o caso e prontificando-se, afinal, a dar projeção a suas palavras dentro do projeto. Decidiu-se que ela seria gravada em estúdio, em fundo neutro, portanto fora do espaço do parque – não me lembro se houve outras conjecturas a respeito da escolha da locação para a mãe, poderia ter havido outras opções, mas sinceramente ainda hoje não vejo o que poderia ser mais adequado para o seu registro, levando em conta a intenção de preservá-la da colagem sobre o parque. O parque era o espaço da demência, da loucura e da alienação, não de quem teve o filho assassinado covardemente pela polícia. Penso hoje que ir até sua casa poderia ter sido perigoso, um perigo potencialmente residente no próprio espaço da realidade, que poderia por uma fresta adentrar a sala escura de nossos experimentos cínicos e escarnáticos, e que residiam na idéia sempre frisada por Newton de que o documentário deveria se construir sempre a partir do ponto de vista narrativo dos policiais. Evitar a realidade é um pecado na igreja do documentário? Que seja. Sob esse ponto de vista, omitir o espaço “real” em torno dos pais da vítima foi o que permitiu que o filme pudesse finalmente incorporá-los, ao mesmo tempo preservando a integridade pessoal da mãe e o traçado que o projeto, transformado radicalmente pela imposição do silêncio pela polícia (que proíbira os policiais envolvidos no caso de prestar declarações ao documentário), enfim descobrira.

Sobre o cinismo, uma coisa que sempre me parecia hilária, ao catalogar o material bruto que a certa altura me chegava quase que diariamente na ilha de edição, era o fato que NUNCA, NINGUÉM que aparecia no filme questionava por quê cargas d’água falava-se de tortura em meio a brinquedos; da doutrina evangélica num carrossel; de direitos humanos numa mesa mal improvisada em meio a um parque de diversões. É de uma ingenuidade genuinamente estúpida – sinceramente não há como não rir dos dignos representantes dos direitos humanos sentados no meio de um parquinho, repetindo as velhas ladainhas de sempre, como se fosse normal promover um debate em meio a brinquedos, e com um palhaço estúpido a andar de um lado para outro. Lembro ainda que trabalhei arduamente nesta sequência, para dar cabo satisfatoriamente de um certo “efeito blá-blá-blá”, imaginado pelo Newton, e que consistia na sobreposição das falas do debate, construindo a impressão de que todos queriam falar ao mesmo tempo, sem respeitar a opinião do outro. Aquela confusão toda foi completamente construída na montagem (perdoai!), pois é assim que entendíamos estilisticamente o que ocorre quando põe-se frente à frente burocratas e policiais para discutir o conceito de “direitos humanos”. Aparentemente, a etiqueta e a educação davam a impressão de que às vezes queriam se ouvir. Mas decididamente não estávamos interessados em etiqueta. Etiqueta, como Newton gostava de dizer durante a edição, é a ética da elite, do bem-educadinho. Discutir ética de verdade é mais embaixo.
Rimos e rimos muito na ilha de edição, e ainda hoje me cago de rir quando tenho o prazer de assistir a esta cena. Isso quer dizer que o filme é “contra os direitos humanos”? É assim que os educadinhos das universidades brasileiras preferem ver, para não trair suas teorias teóricas? Divirto-me com a paródia que fizemos, e com a lucidez de Newton em fazer um filme que critica tanto a polícia quanto os críticos da polícia, pois os críticos da polícia e os defensores dos direitos humanos estão presos em idéias e teorias que não se aplicam na realidade, que não lhes permitem atuar de maneira concreta sobre a complexa questão da segurança pública no Brasil. Ficam lá nas suas palestras, nas suas conferências, nos seus programas de televisão, sentados nas suas cadeiras enquanto o pau come na rua. Esses senhores têm o seu papel sim, importante, mas que é importante na sua pontualidade cotidiana, de ação concreta na assistência às pessoas que não têm defesa diante da violência corporativa, da violência do Estado. São necessários e assim são nobres, mas como teóricos são patéticos. Humanismo de academia não resolve. Ademais, é sempre bom lembrar que o documentário estava sendo construído a partir do ponto de vista dos policiais, que sequer suportam ouvir falar de “direitos humanos”, pois para os “direitos humanos” policial é apenas uma abstração, um signo maligno da ditadura, entidades sem existência física – como se também não fossem mais uns fudidos. Tá bem, mas o que você propõe afinal? – diria provavelmente algum furioso estudande - a anarquia? – Sei lá – responderia eu - não sou procurador do Estado, nem defensor profissional dos direitos humanos, e muito menos crítico, que dirá católico. Exigir esta resposta e esta proposição de um documentário, ou qualquer tomada de posição do mesmo a favor deste ou daquele, é puro equívoco. É um pensamento de rodapé. É até feio.

Diante de Pereira, o justiceiro evangélico, sentia um certo ódio (perdoai novamente!). Tive que me controlar um bocado diante da imagem deste homem, que levava suas vítimas covardemente para um matão na zona leste e as executava. Cresci na periferia e já havia topado tipos assim, e ouvido inúmeras histórias destes pés-de-pato. O pé-de-pato para mim é um personagem de infância, que habitava a noite de onde eu morava, trafegando encapuzado pelas ruas de terra em um Maverick negro, em baixa velocidade, arma no cinto, acompanhado de outros 4 justiceiros de bigode bem-feito, com dedos e olhos amarelos. Na periferia sentíamos ódio destas figuras, ficávamos indignados, e quando crescíamos frequentemente gostávamos da idéia de um dia poder fazer também vingança. É essa a lógica que se deseja e que acontece muitas vezes na periferia, a do olho-por-olho e dente-por-dente. No fundo nunca levei isto mesmo a sério, afinal fiquei vivo para poder exterminá-lo ao menos esteticamente. Seria incapaz de matar alguém fisicamente, em nome do que quer que seja, mesmo um assassino fardado, cínico e covarde como Pereira. Aliás, em termos de atuação dentro do documentário, Pereira leva o Oscar – proporcionou-nos uma autêntica cena de documentário clássico ao narrar sua conversão religiosa. É pecado avacalhar o espaço sacrossanto do documentário? Que seja. Gostaria apenas que alguém me dissesse o que é preciso fazer no Brasil para acabarmos de uma vez por todas com a lógica da patrulha.
Quanto ao palhaço, este impôs-se no filme. Impôs-se à equipe de filmagem, à direção e à edição. Confesso num certo periodo do trabalho que lutei contra este palhaço – sua articulação com o restante do material parecia-me ter que ser feita à forceps – era um aparente alienígena no projeto. Mas assim como os outros personagens, ele também estava interessado no filme, e queria tirar proveito da oportunidade: Pereira queria mostrar sua conversão e seu arrependimento, e pregar a palavra de Deus; Jesus queria mostrar como estava triste, e como queria seu emprego na polícia de volta; Lúcio queria fazer no cinema o papel do justiceiro destemido; a vítima queria justiça; e o palhaço queria aparecer na televisão. E para isso dispôs-se ao jogo, tanto que sua atuação passou a modelar-se com o decorrer das gravações, e isto era bastante visível no material – no processo, ele aprendeu por exemplo que era mais engraçado fazer papel de mau-humorado do que fazer suas habituais palhaçadas sem graça. E assim o fez.

No mais, falando genericamente sobre o trabalho, mudaria poucas coisas da montagem. Primeiro, tentaria diminuir drasticamente a voz over de Lúcio no início, e daria mais tempo às imagens inaugurais – há ali um problema de ritmo. E certamente montaria a sequência de Jesus caminhando pelo bairro, em seu dia-a-dia de segurança particular, de outra maneira, sem aquela música de pianinho. A música ali sobra, está over, dava pra ser mais elegante, mas os parcos 2 meses dados pela produção não me permitiram decantar tudo plenamente – sob meu ponto de vista teria sido um trabalho perfeito em sua forma final, não fossem estes pequenos pormenores – o início e a caminhada de Jesus. De qualquer modo, realizar uma montagem tão intensa em apenas 2 meses é um feito bastante grande, e tenho muito orgulho do que pude fazer em tão pouco tempo.

Fizemos um documentário anti-ético? Como montador assumo todas as construções de sentido, foram todas elas fruto de debate, discordâncias e afinidades que foram se resolvendo intuitiva e intelectualmente durante a montagem. É importante frisar o “intuitivo”, pois quando se lê e não se é intuitivo vira-se papagaio, passa-se a enxergar o mundo a partir de determinações que valem uma estrelinha no caderno no esquema clientelista da universidade, mas que tornam a visão obtusa e o pensamento monológico. Daí que a estreiteza intelectual passa a agir sobre os aspectos físicos, fica-se eunuco, com um ar de nerd, têm-se que usar óculos, de preferência fundos e com um grosso aro preto, no máximo vermelho, pra parecer mais despojado, e ficar com uma cara de pudim, com a mão no queixo, predisposto sempre a dizer algo inteligente e perspicaz a cada palavra. Passa-se a citar idéias de Louis Skorecki, que fica clamando pelo mundo um ambiente sagrado, silencioso e litúrgico para a experiência dentro das salas de cinema. É este o cinema das igrejinhas. Particularmente, acho uma merda esta idéia, assim como acho uma cagalhada sem fim a moral católica.

Sinceramente o cinema para mim é algo fetichista, profano e vulgar, suado, ruidoso, barulhento, sujo, fedendo a comida, perdido em alguma sala de Havana, da Índia ou da Nigéria. Disto os moços de cérebro perfumado também têm horror. E têm horror aos peitinhos da negra em El Benny, aos closes maravilhosos como nunca vi em El Benny, ao cinema como espetáculo público coletivo e popular de fato, e não como uma experiência privada numa sala cheia de gente. Uma projeção de El Benny, ficção cubana pós-moderna super bem produzida, em Havana, que tive a oportunidade de ver junto com Jean-Claude Bernardet foi a maior experiência cinematográfica que pude viver (a propósito, essas conexões aqui com Jean-Claude não são apenas acaso, cada vez mais acredito que tudo é uma coisa só. A vida é mesmo holística, é só saber conectar os signos). Tínhamos ido ao cinema para ver o público, o comportamento verdadeiramente sofisticado, cinematográfico e participativo do público cubano, e não houve um minuto sequer em que o público não falava, ou mesmo não se esmurrava, numa cena que ocorreu diante dos meus olhos maravilhados. Maravilhados por ter vivenciado o cinema como um evento social pleno, e maravilhados pela sorte de ter sido presenteado, para além de tudo, com um filme surpreendentemente belo, vivo, pulsante, musical – o oposto dos filmes desossados e secos que os acadêmicos têm o hábito de fazer quando se aventuram por trás das câmeras. Eu e Jean-Claude saímos então exaustos, empapados de suor, moídos e felizes daquela sala, como se estivéssemos saindo de uma deliciosa buceta gigante, de um transe xamânico, de uma festa de Exu. Sempre me pergunto porque é que os críticos gostam de fazer filmes descarnados, sem pinto nem bunda. Não entendem que a oposição ao espetáculo alienador do naturalismo norte-americano, e à pretensão de objetividade dos documentários da TV à Cabo, pode ser dada a partir do contra-espetáculo (mesmo dentro do documentário). Os esquerdistas católicos preferem a igreja, naturalmente, o silêncio, a castração, a penitência. Ai, meu Deus do céu, vai ser sério (e chato) assim no inferno.
Recordo deste episódio em Havana, assim de rompante porque há também uma situação interessante que me lembro, e que pude presenciar nos laboratórios da Teleimage, em São Paulo, e que ocorreu durante uma copiagem de Jesus no Mundo Maravilha. A sala de copiagem tinha uma parede de vidro, que dava para um corredor, e os técnicos do laboratório começaram aos poucos a se postar diante do monitor, e em poucos momentos o documentário foi uma sensação absoluta entre os funcionários do laboratório, que riam com o filme e se divertiam com ele. Ficaram ao final grudados àquilo e adoraram, coisa notável para um grupo de pessoas que lida com a imagem e processa milhares de copiagens de milhares de filmes em seu dia-a-dia. A explicação para isto, a meu ver, deve-se para minha satisfação à eficácia da montagem por um lado, que pôde seduzir e manter um ritmo adequado ao espectador de televisão; e por outro lado pelo fato justamente de Jesus no Mundo Maravilha possuir um humor que a tudo corrói, pois o humor popular é há séculos assim: não perdoa nada, nem a esquerda e nem a direita, e morre de rir dos aspectos grotescos do físico, dos risos canalhas, do ser humano apalhaçado submetido ao ridículo e à estupidez de que é capaz. E a cultura pequeno-burguesa (desculpem, mas não há mesmo melhor palavra) não suporta este humor popular, transcendente, despurado e desconhecedor da moral. Há séculos também que tenta combatê-lo. Há um plano em Jesus que sintetiza esta conexão com o humor popular muito bem: os 3 policiais brincando de foder com o palhaço, num plano médio, e o palhaço fingindo hiperbolicamente a sensação do empalamento quando recebe uma garrafada de plástico no cu. Newton traduz isto em idéias sobre o filme quando diz que “queria fazer uma mistura de Jean Rouch com Pânico na TV”. Então, realismo sim, mas não nos termos dogmáticos que tentam impor. Não o realismo humanista do clientelismo acadêmico. Ludismo então, lúdico e ludder, contra as máquinas acadêmicas do realismo pequeno-burguês!

Então gritam os pudins de óculos: “Humor, nem pensar. Ironia e cinismo, proibido! Escracho então, impossível! Em um documentário, imperdoável! Em um documentário de montagem, sacrílego!”. Os artigos que criticaram o documentário Jesus no Mundo Maravilha levantam a voz em nome da ética, mas seus julgamentos são de cunho moral. E de uma moral católica, visivelmente contaminada por idéias que se traduzem muitas vezes em expressões como “fé” na realidade, “pudor” diante do real, “dez mandamentos”, toda uma terminologia adaptada da liturgia católica. O documentário brasileiro hoje em dia tem até um “decálogo”, como é que é possível? Mas quem tem o espírito atento e não se deixa controlar por estas imposituras pula logo fora, como o próprio Eduardo Coutinho, que mesmo muito longe da oposição radical a isto, que Jesus no Mundo Maravilha representa, driblou e confundiu o obscurantismo realista pré-tropicalista, pré-cinema sonoro, pré-vertov, pré-bakhtin, pré-cervantes, e foi documentar a ficção do ser humano. Quando lia Dom Quixote, sempre tinha a impressão de estar vendo um documentário - não sei por quê :P

A rigor e terminantemente, não tenho nada contra o direito dos católicos, dos acadêmicos e dos realistas ortodoxos fazerem seus filmes. O problema é que agora eles querem dizer o que pode e o que não pode, e só eles querem fazer. E para isso têm formado uma patrulha pesada, que controla júris e editais através do lobby e da instrumentalização acadêmica, tentando determinar aquilo que é e o que não é. Sobre isto, o Newton tem outra frase da qual gosto muitíssimo, e que é mais ou menos assim: “quero que o mundo seja plural, claro, mas quando eu faço um filme eu só quero poder ser autoritário e dizer aquilo que eu penso”. Ser autoritário aqui significa poder ser livre para dizer o que quiser, sobre o que quiser, da forma que quiser, valendo-se do recurso estilístico que julgar mais apropriado para, naquele momento de sua vida e naquele momento do mundo, traduzir em matéria estética aquilo que pensa, sobre pessoas, coisas ou qualquer abstração.


Para terminar logo gostaria de fazer duas citações, mas adianto desde já que não é para conferir autoridade ao que escrevo (apenas acho-as legais, ajudam a sintetizar e a confundir muita coisa ao mesmo tempo); aprendi este recurso de conferência de autoridade nas aulas de redação do cursinho - acho até muito manhoso citar um clássico e tal, encher tudo com notas de rodapé, mas não gosto muito. Tenho mesmo índole de criador e de montador, prefiro lidar livremente com o que leio, vejo e ouço, daí que vou me apropriar sem citar a fonte (não chorem, meninas, vai tudo com aspas):


“Ética é estar à altura daquilo que lhe acontece”.
“A moral é a fraqueza do cérebro”

Este texto, “Escárnio da Crítica Católica”, entra desde já para os anais do documentário brasileiro.

Sem mais, vão ver se eu estou na esquina

André da Conceição Francioli

Lisboa, 16/04/2010